CASO JÁ vs. RIGOTTOPor Luiz Cláudio Cunha em 13/11/2012 na edição 720 - Observatório da Imprensa
O Brasil de duas caras foi desmascarado na quarta-feira (7/11), no coração de Porto Alegre. A obra Uma Reportagem, Duas Sentenças,
que o jornalista Elmar Bones autografou na 58º Feira do Livro, na
capital gaúcha, é uma pancada doída no fígado de um país marcado pela
hipocrisia e um choque na consciência de duas instituições fundamentais
da democracia: a Mídia e a Justiça.
Nas suas enxutas 144 páginas, arrumadas em apenas duas semanas numa
edição modesta da combalida editora do autor, a denúncia de Bones é um
oportuno dique de contenção e reflexão contra a maré triunfalista de uma
imprensa caudalosa nos elogios sem freios à Suprema Corte que julga a
enxurrada de falcatruas da quadrilha do mensalão.
Existe corrupção e existem juízes em Brasília, como prova o STF. Mas
também existe corrupção e faltam juízes em Porto Alegre, como lembra
Bones, vítima do mais persistente, inclemente, longo processo judicial
contra a liberdade de expressão no país. Não existe paralelo de uma ação
tão prolongada da Justiça contra um órgão de imprensa no Brasil
pós-ditadura de 1964, tudo isso sob o silêncio continuado da mídia e a
inércia complacente de juízes.
É um absurdo contraponto de mutismo e omissão em Porto Alegre ao
espetáculo de estridência e protagonismo que se escuta e vê em Brasília.
A mídia e a justiça estão lá e cá, em campos opostos, emitindo sinais
contraditórios sobre seus papéis. Cumprem bem seu ofício na capital
brasileira e fazem muito mal (ou não fazem) o seu trabalho na capital
gaúcha.
O espanto de Dilma
O calvário de Bones começou em 2001, quando seu pequeno jornal, o JÁ,
um mensário de cinco mil exemplares, ousou contar a história da maior
fraude do Rio Grande do Sul, praticada por uma quadrilha infiltrada em
licitações de geradores na CEEE, a empresa pública de energia elétrica
do estado. Praticaram, em valores corrigidos, uma tunga de mais de R$
800 milhões, quase 15 vezes o montante do mensalão agora em causa no
Supremo Tribunal Federal. O jornal JÁ contou que, em março de
1987, o líder do governo do PMDB na Assembleia gaúcha, deputado caxiense
Germano Rigotto, forçou a criação do cargo de “assistente da diretoria
financeira” na CEEE, contrariando a determinação do governador Pedro
Simon de austeridade total na empresa, que acumulava dividas de US$ 1,8
bilhão.
Acomodou-se lá Lindomar Rigotto, irmão do deputado. “Era um pleito
político da base do PMDB de Caxias do Sul”, reconheceu o secretário de
Minas e Energia da época, Alcides Saldanha, na CPI instalada em 1995, no
governo Antônio Britto. Na administração anterior, no governo Alceu
Collares, a investigação ganhou eletricidade quando a sindicância
interna da CEEE foi remetida, em dezembro de 1994, à Contadoria e
Auditoria Geral do Estado (CAGE) pela espantada secretária de Minas e
Energia: “Eu nunca tinha visto nada igual”, confessou diante de tantos
malfeitos a economista Dilma Rousseff, no início de uma carreira
política que 16 anos depois a levaria ao Palácio do Planalto.
O Rio Grande nunca viu uma CPI como aquela. Foi a primeira comissão
parlamentar, entre as 139 criadas no estado desde 1947, que apontou os
nomes de corruptores e corruptos. Foram denunciadas 11 marcas famosas
(Camargo Correa, Alstom, Brown Boveri, Coemsa, Lorenzetti, entre outras)
e 13 funcionários importantes, com destaque para Lindomar Rigotto,
citado em 13 depoimentos como a figura central da organização criminosa.
Está lá no relatório final: “De tudo o que se apurou, tem-se como
comprovada a prática de corrupção passiva e enriquecimento ilícito de
Lindomar Vargas Rigotto”, escreveu o relator, deputado petista e
ex-prefeito caxiense Pepe Vargas, primo de Lindomar e Germano Rigotto e
atual ministro da Desenvolvimento Agrário do governo Dilma Rousseff.
O crime sem gasolina
As 260 caixas de papelão da CPI, contendo os autos de 30 volumes e 80
anexos envolvendo 41 réus – 12 empresas e 29 pessoas físicas –, foram
remetidas no final de 1996 ao Ministério Público e transformadas numa
ação civil pública na 2ª Vara Cível da Fazenda Pública na capital
gaúcha. Lá, ao contrário do mensalão que entusiasma o país e a mídia
pela celeridade do Supremo, o processo nº 011960058232 da fraude da CEEE
hiberna e acumula poeira sob o inexplicável desinteresse da imprensa e
do Judiciário, envolto há 16 anos num inexplicável, constrangedor
“segredo de justiça”.
Por alguma insondável razão, nenhum repórter, nenhum pauteiro, nenhum
jornal, nenhum magistrado em Porto Alegre se anima e se inspira a
aplicar à maior fraude da história gaúcha a overdose de transparência e
informações relatadas aos borbotões em Brasília nas manchetes de
jornais, capas de revista e transmissões ao vivo das emissoras de rádio e
TV, transformando cada ministro do Supremo em celebridade midiática no
maior julgamento de sua história.
O mistério na CEEE aumentou, uma década depois, com o fim violento do
principal implicado, Lindomar Rigotto. Dono então de uma boate da moda
no litoral gaúcho, o ex-executivo da CEEE foi morto com um tiro no olho
desferido por um assaltante, no Carnaval de 1999. Dois anos depois, com a
determinação que não tinha a burocrática imprensa tradicional, Bones
foi atrás dessa história, superando a pobreza de seu jornal: “A
reportagem foi feita num momento muito difícil. Não tínhamos nem
gasolina para mandar um repórter ao litoral, para pesquisar o processo
do crime no fórum”, conta ele no livro.
A reportagem de quatro páginas de 2001 deu ao JÁ os principais
prêmios do jornalismo, incluindo o prestigiado Esso. Quem não gostou
foi a família Rigotto, que abriu dois processos na Justiça: um por
calúnia e difamação, outro pedindo indenização por dano moral. A
denúncia foi feita pela matriarca, dona Julieta, hoje com 91 anos, mãe
de Lindomar e Germano. No processo penal, Bones foi absolvido e até
elogiado pelo promotor e pela juíza. A ação civil, pela extinta Lei de
Imprensa, chegou a ser arquivada mas foi reaberta em 2003, quando
Germano Rigotto já era governador. A empresa JÁ Editores foi condenada
por dano moral. Assim, a mesma Justiça conseguiu chegar a duas
conclusões díspares: absolveu o jornalista e condenou o jornal por ter
publicado a mesma reportagem!
O espasmo da internet
A dÍvida ultrapassou os R$ 100 mil e estrangulou o jornal que tinha 25
anos de vida. A empresa teve os bens penhorados e Bones ainda sofreu o
bloqueio de suas contas bancárias. Esta saga inacreditável, que pune há
uma década o jornalismo de qualidade e corajoso de Bones, passou batida
pelo clamoroso silêncio da imprensa. Quem quebrou este pacto de mutismo
foi este destemido Observatório da Imprensa,em novembro de 2009, quando um exausto Bones anunciou uma edição de despedida para seu moribundo jornal.
O artigo “O jornal que ousou contar a verdade”, assinado por mim, provocou indignação pela morte anunciada do JÁ. Outros dois artigos no Observatório, em agosto e em setembro de 2010 (ver “Como calar e intimidar a imprensa” e “Desculpa para calar a opinião”), acrescentaram novos detalhes ao drama de Bones, e desataram reações. No conjunto do OI
foram mais de 10 mil palavras, 61 mil caracteres, 18 páginas de relatos
que não tinham merecido uma única linha na imprensa tradicional, sempre
tão ciosa de sua liberdade.
O espasmo de liberdade, como sempre, veio da internet. A partir do Observatório,
a querela dos Rigotto com Bones ganhou espaços generosos e solidários
nos sites e blogs mais importantes e mais acessados do país: Ricardo
Setti, Cláudio Humberto, Ricardo Noblat, Congresso em Foco, Luís Nassif,
Paulo Henrique Amorim, Carlos Brickmann, Sul21. Dos grandes jornais,
apenas O Estado de S.Paulo,que vive uma pendenga parecida com a família do senador José Sarney, abriu espaço para o caso JÁ vs. Rigotto.
Bones anota o seguinte no livro:
“No Rio Grande do Sul, com exceção do Jornal do Comércio, que publicou a nota distribuída pela Agência Estado, a imprensa continuou ignorando o assunto. A Zero Hora deu
uma notinha de cinco linhas na coluna de Tulio Milmann, para dizer que o
ex-governador Rigotto não tinha nada a ver com a questão. O processo
era coisa da mãe dele. Outro diário da capital, O Sul, abordou o
assunto através da coluna de Cláudio Humberto. Mas os jornais do Grupo
Sinos (Novo Hamburgo e São Leopoldo), os principais da região
metropolitana de Porto Alegre, que também publicam a coluna de Cláudio
Humberto, censuraram os trechos nos quais ele se referiu ao assunto”.
O dono do Grupo Sinos, Mário Gusmão, nem se coçou, embora fosse em 2010
um dos representantes brasileiros entre os honoráveis 17 membros da
Comissão de Liberdade de Imprensa e Informação da prestigiada SIP
(Sociedade Interamericana de Imprensa), que reúne as mais importantes
corporações de mídia do continente.
Coisa da mamãe
Quem se incomodou, de fato, foi o próprio Rigotto, que sempre reagiu
irritado à convicção geral de que estava por trás da longa perseguição a
Bones. “O processo é coisa da minha mãe. Eu não tenho nada a ver com
isso”, reagiu, num telefonema irado para mim, respondendo ao primeiro
artigo deste Observatório. Coincidência ou não, dois dias após a
publicação, em novembro de 2009, Rigotto convocou uma inesperada
entrevista coletiva para anunciar, chorando, que desistia de sua
candidatura ao governo gaúcho na eleição de 2010.
Fora da disputa pelo Palácio Piratini, Rigotto embicou para um desafio
aparentemente mais fácil: uma das duas cadeiras em jogo pelo Senado.
Começou como favorito, na preferência popular, enquanto repercutiam pela
internet os detalhes sobre o processo que matava o jornal de Bones.
Líder disparado na intenção de voto das pesquisas iniciais, o filho de
dona Julieta, que não tinha nada a ver com isso, acabou despencando na
preferência popular. Perdeu as duas vagas para os senadores Paulo Paim
(PT) e Ana Amélia (PP) e saiu da eleição com menos de 2,5 milhões de
votos entre os 8 milhões de eleitores gaúchos.
Inocente ou não, Germano, o irmão de Lindomar e filho de dona Julieta,
acabou inscrevendo para sempre seu honrado nome no relatório final da
66ª Assembleia Geral da Sociedade Interamericana de Imprensa, realizada
em novembro de 2010 na cidade mexicana de Mérida. O capítulo sobre
liberdade de imprensa no Brasil, escrito pelo jornalista brasileiro
Sidnei Basile, então vice-presidente institucional da Editora Abril e
membro do Comitê de Liberdade de Expressão da SIP, registra o seguinte:
“No Sul do Brasil, continua o calvário por que passa o jornal gaúcho JÁ
e seu proprietário, o jornalista Elmar Bones, por conta de uma
reportagem publicada há dez anos sob o título ‘Caso Rigotto – um golpe
de US$ 65 milhões e duas mortes não esclarecidas’. Isenta de
comentários, mas recheada de informações, a matéria mereceu alguns dos
mais importantes troféus regionais de jornalismo, como o Esso Regional e
o ARI, da Associação Riograndense de Imprensa. Não obstante, o jornal
foi condenado a pagar indenização civil incompatível com sua capacidade
econômica e teve de fechar as portas.
“A reportagem contava o envolvimento de Lindomar Rigotto – irmão do
então deputado estadual e depois governador Germano Rigotto – em uma
licitação pública da Companhia Estadual Energia Elétrica. Indicado pelo
irmão para a diretoria financeira da empresa, Lindomar acabou
protagonizando o escândalo que resultou em uma CPI que indiciou ele,
outras onze pessoas e onze empresas.
“Segundo o relatório final dessa Comissão, o esquema foi montado por
Lindomar. ‘De tudo o que se apurou, tem-se como comprovada a prática de
corrupção passiva e enriquecimento ilícito de Lindomar Vargas Rigotto’,
escreveu o relator da CPI, deputado Pepe Vargas (PT-RS).”
Ao morrer em março de 2011, aos 64 anos, vítima de um câncer
fulminante, Sidnei Basile deixou a folha impecável de um dos mais
respeitados profissionais da imprensa brasileira. Um ano antes, Basile
fez uma pública declaração de fé: “Não é o Estado que fiscaliza a
imprensa, é a imprensa que fiscaliza o Estado”.
Elmar Bones, que o ex-governador Rigotto também não deve conhecer, tem
uma biografia igualmente respeitável, com passagens como editor ou
diretor de publicações como Gazeta Mercantil,Veja,IstoÉ,O Estado de S.Paulo,Jornal do Brasil eFolha da Manhã.Mas sua página mais gloriosa é um jornal da imprensa nanica, o CooJornal,um
mensário editado pela Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre
(1976-1983) nos anos de chumbo da ditadura e fechado por pressão dos
militares sobre os anunciantes. Como pregava Basile e fazia Bones, o CooJornal
era um atrevido jornal de resistência que sabia que a função da
imprensa de todos os regimes e todos os governos é fiscalizar o Estado –
e não o contrário.
No texto produzido para a SIP, com versões adicionais em inglês e
espanhol, Basile reservou três parágrafos, 15 linhas e 194 palavras para
resumir o longo calvário de Bones e seu jornal.
O nome Rigotto é citado quatro vezes no relatório final de 2010 da SIP.
Dona Julieta, a suposta dona do processo, nem é mencionada.
Germano Rigotto, o ex-governador que não tem nada a ver com isso, é citado uma vez.
Quem quiser saber as razões, leia o livro indispensável de Elmar Bones sobre o Brasil de duas caras.
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