Em 14 de julho, André Caramante, repórter da
Folha de S.Paulo, assinou uma
matéria
com o seguinte título: “Ex-chefe da Rota vira político e prega a
violência no Facebook”. No texto, de apenas quatro parágrafos, o
jornalista denunciava que o coronel reformado da Polícia Militar Paulo
Adriano Lopes Lucinda Telhada, candidato a vereador em São Paulo pelo
PSDB nas eleições do último domingo, usava sua página no Facebook para
“veicular relatos de supostos confrontos com civis”, sempre chamando-os
de “vagabundos”. Em reação à matéria, Telhada conclamou seus seguidores
no Facebook a enviar mensagens ao jornal contra o repórter, a quem se
referia como “notório defensor de bandidos”. A partir daquele momento,
redes sociais, blogs e o site da Folha foram infestados por comentários
contra Caramante, desde chamá-lo de “péssimo repórter” até defender a
sua execução, com frases como “bala nele”. Caramante seguiu trabalhando.
No início de setembro, o tom subiu: as ameaças de morte ultrapassaram o
território da internet e foram estendidas também à sua família.
O que aconteceu com o repórter e com o coronel é revelador – e nos
obriga a refletir. Hoje, um dos mais respeitados jornalistas do país na
área de segurança pública, funcionário de um dos maiores e mais
influentes jornais do Brasil, no estado mais rico da nação, está
escondido em outro país com sua família desde 12 de setembro para não
morrer. Hoje, Coronel Telhada, que comandou a Rota (Rondas Ostensivas
Tobias de Aguiar) até novembro de 2011, comemora a sua vitória nas
eleições, ao tornar-se o quinto vereador mais votado, com 89.053 votos e
o slogan “Uma nova Rota na política de São Paulo”.
O que isso significa?
Os 13 anos em que André Caramante cobre a área de segurança pública são
marcados pela denúncia séria, resultado de apuração rigorosa, dos
abusos cometidos por parte da polícia no estado de São Paulo. A
relevância do seu trabalho foi reconhecida duas vezes pelo Prêmio Folha
de Jornalismo. Caramante já denunciou sete grupos de extermínio formados
por policiais militares e civis, assim como por ex-policiais. Mantém
sua própria planilha na qual registra os mortos pela polícia. E faz a
denúncia sistemática da figura amplamente difundida da “resistência à
prisão” como justificativa para execução, em geral dos suspeitos mais
pobres. Por sua competência, Caramante ganhou o respeito da sociedade
interessada em uma polícia eficiente, com atuação pautada pelo
cumprimento da lei – e o ódio de uma minoria truculenta, os maus
policiais, tanto militares quanto civis, e daqueles cujos interesses e
projeto de poder estão ligados a eles.
Antes de ser jornalista, Caramante quis ser jogador de futebol. Morador
da periferia de São Paulo, comprou a primeira chuteira vendendo
papelão. Era “um meia-direita dedicado”, na sua própria avaliação, e
usou a chuteira com brio nas peladas de várzea e nas peneiras na
Portuguesa, no Novorizontino e no Palmeiras, clubes nos quais chegou a
treinar nas categorias de base. A necessidade de ajudar com as despesas
da casa o despachou para a arquibancada. Em especial a da Vila Belmiro,
por um amor incondicional pelo Santos herdado do pai.
Aos 11 anos, Caramante começou a trabalhar como camelô, vendendo
chocolates e sacolas no Brás, em São Paulo. Mais tarde, aos 17, o
estudante de escola pública pagou a faculdade de jornalismo da Uniban
com o salário de office-boy e com os vales-transporte que economizava
fazendo o serviço a pé. “Não sabia se a faculdade era boa ou ruim, não
entendia dessas coisas, apenas sabia o que queria fazer”, conta. “O
livro
Rota 66, de Caco Barcellos, tinha me mostrado o que era jornalismo.”
Em seu livro
Rota 66 – a história da polícia que mata (Record),
Caco Barcellos, um dos grandes nomes do jornalismo brasileiro, hoje na
TV Globo, investigou o trabalho da Rota entre as décadas de 1970 e 1990.
E provou que ela atuava como um aparelho estatal de extermínio,
responsável pela execução de milhares de pessoas. A reação às denúncias
obrigou o repórter a passar um período fora do Brasil, devido a ameaças
de morte. Duas décadas depois do lançamento do livro que o inspirou,
Caramante vive uma situação semelhante.
A notícia de que ele estava vivendo escondido, com a família, vazou na semana passada, em matéria da
Revista Imprensa.
Até então, Caramante pretendia manter o fato em sigilo. A decisão de
esconder-se com a família foi difícil para o repórter que nunca quis
virar notícia – e que sempre evitou ser fotografado. Enquanto era alvo
único das ameaças de morte, Caramante manteve uma rotina normal. O
jornalista só aceitou se mudar para um destino secreto quando sua
família passou a ser ameaçada. Mesmo assim, para ele é ponto de honra
seguir com seu trabalho de reportagem. Pela internet, envia informações
ao jornal com frequência. E segue assinando matérias na área da
segurança pública.
Quando um repórter é obrigado a mudar de país e se esconder com a
família por fazer bem o seu trabalho e prestar um serviço à população,
ao fiscalizar os órgãos de segurança pública, este não é um problema só
dele – mas da imprensa, que tem o dever de informar, e da sociedade, que
tem o direito de ser informada. É disso que se trata.
Na entrevista a seguir, feita por email entre sexta-feira (5/10) e
domingo, André Caramante, 34 anos, fala sobre a situação de exceção que
ele e sua família estão vivendo, mas principalmente sobre as complexas
relaçõesentre violência e poder que a tornaram possível.
Em 14 de julho, você publicou na Folha de S.Paulo
uma
matéria com o seguinte título: “Ex-chefe da Rota vira político e prega a
violência no Facebook”. Você se referia ao coronel reformado Paulo
Adriano Lopes Lucinda Telhada, que comandou a Rota, em São Paulo, até
novembro de 2011, e, nestas eleições, disputou uma vaga para vereador
pelo PSDB. O que aconteceu a partir desta matéria que o levou a, dois
meses depois, ter de esconder-se com a família?
André Caramante –Cubro segurança pública há 13 anos,
então, muito dessa situação não é exatamente novidade. Nestes 13 anos,
sempre mantive minha lupa sobre os abusos cometidos por policiais,
especialmente no que diz respeito à letalidade. Considero legítimo que a
sociedade possa fiscalizar o Estado, especialmente seu braço armado.
Não podemos considerar eficiente uma polícia que mata tanto quanto a do
estado de São Paulo. Entre 2006 e 2010, a Polícia Militar de São Paulo
matou nove vezes mais do que todas as polícias dos Estados Unidos
juntas. A cultura da nossa polícia militarizada permite que se mate sem
que se conheça sequer a identidade do “oponente”. É tão normal e
aceitável quanto utilizar uma figura jurídica inexistente para preencher
o boletim de ocorrência – a “resistência (à prisão) seguida de morte”. A
morte do empresário
Ricardo de Aquino
por policiais militares no bairro Alto de Pinheiros (em São Paulo)
colocou a questão na agenda da mídia e das autoridades alguns meses
atrás. Como ele, vários outros foram vítimas dessa cultura e do mau
treinamento. É óbvio que alguns policiais agem na ilegalidade e a
maioria age dentro da lei. Também faço um trabalho consistente de
denúncia de grupos de extermínio formados por policiais militares e
civis e ex-policiais civis e militares, tendo revelado ao menos sete
deles. São grupos que, ao exemplo das milícias do Rio, tentam controlar
as atividades ilícitas na cidade – máquinas caça-níquel e tráfico de
drogas, às vezes cruzando o caminho do PCC – e geram mortes. Há grupos
bem estruturados e com braços de inteligência. Um deles, inclusive,
planejou a morte de um integrante do alto escalão do governo paulista,
sem que tenha conseguido levar a cabo a ação.Meu trabalho de denúncia
também abrange a corrupção na Polícia Civil. Hoje, as coisas se dividem
mais ou menos assim no Estado de São Paulo: alguns integrantes da PM
cometem violência e alguns da Civil escorregam na corrupção. São
questões totalmente relacionadas a poder e dinheiro. Em dezembro do ano
passado, publicamos uma investigação da Polícia Federal que mostrava
policiais civis cobrando grandes valores para liberar da prisão
suspeitos de tráfico de drogas. Somadas, as propinas chegavam a R$ 3
milhões. É uma conduta isolada? Esquemas assim não surgem do nada. É da
cultura da instituição, e são as pessoas que constroem a cultura
organizacional. Mudar não é uma questão de ser fácil ou difícil, mas de
não ser interessante para as pessoas que estão lá.
Você vem denunciando essa situação há bastante tempo, mas só agora
teve de esconder-secom sua família por causa de ameaças de morte. O que
aconteceu?
A.C. – O que houve foi não digo o surgimento, mas a
publicidade e o crescimento exponencial de um clima favorável à
intimidação, no qual pessoas sentiram-se à vontade, ou mesmo incitadas, a
disseminar “avisos”. A partir da matéria sobre o que estava acontecendo
no Facebook houve um acirramento dos ânimos de quem antes já me via
como inimigo, além do crescimento quantitativo dos que mantêm os olhos
em mim e no meu trabalho de uma forma negativa.Houve uma onda de
comentários no Facebook, no Twitter, em blogs e no site da
Folha
que foram desde “péssimo repórter” até “bala nele”. Era só “ativismo de
sofá”, de gente que só despeja frases no teclado do computador?
Provavelmente. Depois, alertas de caráter dúbio – “Quando acontecer algo
com alguém da sua família...”, “Quando você for sequestrado...” –
surgiam nos espaços de comentários do site da
Folha em qualquer
reportagem que eu escrevesse e até naquelas em que não tive
participação, mas que traziam denúncias contra membros das polícias.
Também orquestraram o envio de diversas cartas contra mim, enquanto
profissional, para a
Folha.Após pouco mais de um mês de
bombardeio digital, as ameaças tornaram-se mais concretas, com fatos
atualmente sob investigação das autoridades competentes.
Que fatos são estes?
A.C. – Não falo de um fato, mas de uma série, que se
iniciou dias após aquela onda nas redes sociais. Foram ligações,
comprovações por fontes altamente confiáveis,de que estavam levantando
informações de familiares, motos em trajetos curiosamente iguais aos
meus. Não acho possível dimensionar a gravidade do risco, e também
chegou-se a um ponto em que não valia mais a pena ficar avaliando.
Decidi ouvir gente mais experiente do que eu e, em conjunto com o
jornal, foi tomada uma decisão: trabalho à distância.
Não estou fisicamente na redação desde o início de setembro, sem que
tenha saído da ativa. Esta é uma situação em que o risco físico toma a
cena, mas certamente ele não é o único. Venham de onde vierem, a ameaça e
a intimidação têm o objetivo de desestabilizar, tirar de cena. Jogam
com o risco psicológico também, testam quão boa é a sua cabeça e quão
forte é a sua corrente.
Qual é o papel do Coronel Telhada, ex-comandante da Rota, nesta série de ameaças?
A.C. – Em sua página, o coronel reformado começou a
divulgar relatos de confrontos entre PMs da Rota e civis – estes sempre
chamados de “vagabundos” –, além de divulgar fotos de pessoas que,
segundo ele, eram suspeitos de crimes. Fiz um texto objetivo,
relativamente curto, sobre isso. No dia da publicação no jornal, 14 de
julho, ele postou no Facebook uma mensagem na qual me acusava de
“defender abertamente o crime” e pedia uma mobilização contra mim. A
conduta desse senhor deflagrou uma onda de tentativas de intimidação, de
incitação à violência contra um jornalista – um profissional que apenas
retratou o que o próprio coronel reformado registrou publicamente na
rede social. Não estou dizendo que ele quis ou que ele não quis incitar
atos violentos. Estou dizendo que acabou incitando.
Quem efetivamente está ameaçando você? E quais foram as ameaças?
A.C. – De onde vejo, apontar um ou outro possível
autor pode dar grande margem a erro. Tenho minhas suspeitas, mas não
cometeria o equívoco de acusar sem provas. Creio que haja dois tipos de
ameaça. A primeira se aproxima do “ativismo de sofá”, de quem escreve no
computador algo que jamais cumprirá. Os autores deste tipo de ameaça
não são tão desconhecidos assim, e não é tão difícil encontrá-los nos
canais digitais. A segunda, esta sim grave, é a ameaça de quem considera
a possibilidade de agir. Aqui estão desde admiradores de policiais
alvos de reportagens, pessoas que pouco têm a perder e vivem com
parâmetros de raciocínio e moral diferentes dos nossos, até outros que
há tempos me têm como um inimigo e podem aproveitar justamente esta
visibilidade do caso do Facebook para tentar algo e “colocar na conta”
de outro. O caso do Facebook, além de ser apenas uma parte da história,
pode ser usado por outros para acobertar eventuais retaliações. Mas,
veja, isto é o que eu deduzo com base na minha experiência, não há
qualquer base de pesquisa ou de investigação científica.
O que você está dizendo é que pessoas que se ressentem há muito
tempo com suas denúncias de abusos cometidos pela polícia estariam se
aproveitando do caso do Facebook para se vingar e desviar a
responsabilidade para o Coronel Telhada?
A.C. – Sim, é uma possibilidade.
Quando as primeiras ameaças se tornaram públicas, você disse que
continuaria a fazer o seu trabalho. Imagino que deve ter sido difícil
tomar a decisão de se afastar da redação. Como esta decisão foi tomada?
A.C. – É importante esclarecer que o termo
“afastamento” não é apropriado para o meu caso. Continuo exercendo
minhas atividades profissionais, onde quer que eu esteja. Não estar
fisicamente na redação me causa impedimentos que são irrisórios frente à
necessidade atual de garantia da integridade, minha e da minha família.
Quando você deixou de trabalhar na redação?
A.C. – Desde o início de setembro. Os advogados do
jornal encaminharam às autoridades uma solicitação de investigação sobre
as ameaças. Alterei completamente minha rotina e minha localização.
Foi difícil?
A.C. – Sou trabalhador desde os 11 anos e não tenho
dúvidas quanto à profissão que escolhi. A decisão de estar fisicamente
ausente da redação não foi nada fácil. Particularmente, via este passo
como um sinal de recuo, um erro do ponto de vista do meu ideal e mesmo
de estratégia em relação a quem tenta enfraquecer o trabalho da
imprensa. O que fizemos, então, foi arquitetar uma ausência que fosse
apenas física, com uma operação que permitisse que seguíssemos em
frente. Existem inúmeras maneiras de fazer reportagem.
Qual foi a reação da sua família e como eles estão vivendo esse momento?
A.C. – Estão todos cientes e bastante atentos. Não é
fácil estar ausente, mas não creio que seria muito melhor estar presente
e vivendo com sombras. Meus filhos percebem a situação incomum que
vivem atualmente, mas ignoram essa história toda. Felizmente, eles
sentem-se seguros onde pai e mãe estão – não importa onde. Minha rede
familiar está permeada pelo estresse, mas ela é muito forte. Sempre foi,
desde muito antes de toda essa situação. Além disso, a corrente formada
por colegas de profissão e entidades daqui e de fora também deixou
claro que este não é um problema só meu. Entidades como Repórteres Sem
Fronteiras, Knight Center of Journalism (vinculado à Universidade do
Texas), Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo, Instituto Sou
da Paz, coletivo Sindicato É Pra Lutar e movimento independente Mães de
Maio se manifestaram publicamente em apoio à minha atuação e ao direito
de informar.
É isso que está em jogo, o direito de informar?
A.C. – É uma questão ligada ao direito de informar e
de ser informado, e meus companheiros de profissão sabem do que falo.
Há, atualmente, no estado de São Paulo, uma grande preocupação por parte
de autoridades da segurança pública de tentar evitar que muitos fatos
sejam tornados públicos pela imprensa. Por conta disso, funcionários
públicos que as autoridades acreditam manter contato com jornalistas
passam a ser alvo de perseguição nas instituições às quais pertencem.
Muitas vezes, essas perseguições são feitas com base apenas no
“achismo”.
Que fatos são estes, que as autoridades da segurança pública não querem que se tornem públicos?
A.C. – Qualquer dado que não conste do relatório
oficial publicado mensalmente no site da secretaria. Não é exagero. Falo
de qualquer dado mesmo. Basta perguntar a quem cobre a área. Não é de
hoje. Sempre foi assim. No estado de São Paulo, jornalistas são
impedidos de consultar boletins de ocorrência, um documento público.
Tudo – absolutamente tudo – tem de passar pelas canetas das assessorias
de imprensa da Secretaria e da Polícia Militar. É uma operação
extremamente centralizada e que visa impedir o repórter de ir a uma
delegacia e obter informações sobre uma ocorrência.
Por quê?
A.C. – Vejo como uma tentativa de construir uma
realidade que não existe aqui, como se vivêssemos na Suécia. A proibição
do acesso a boletins de ocorrência integra uma estratégia de forte
controle de informações. “Só sai o que eu quero.” Não importa a
relevância do dado, esta é a diretriz. Delegados só dão entrevistas
mediante autorização de assessores de imprensa. É meio estranho que uma
autoridade seja submetida a esse tipo de imposição para tentar controlar
a informação.
Esta foi a primeira vez que você foi ameaçado de morte?
A.C. – Não. Como vários outros colegas, já passei por
situações semelhantes. Ouvi pelo telefone frases como “Cuidado, muita
gente morre em assalto por aí”, seguida por meu endereço completo.
Tempos atrás, policiais à paisana fotografaram minha família durante um
passeio.
Você costuma denunciar os abusos cometidos pela polícia,
especialmente contra os moradores das periferias de São Paulo e da
Grande São Paulo. Você se considera, hoje, nesta situação, uma vítima da
polícia?
A.C. – Não me considero vítima de nada. Tenho plena
consciência de que não posso e não quero ser notícia. Sou contratado por
um jornal para contar as histórias das outras pessoas, para fiscalizar
um determinado segmento do poder público. E a minha preocupação é sempre
esta: contar a história do próximo, registrar os fatos, levar a notícia
para quem lê a
Folha de S.Paulo. As páginas de um jornal
marcam a história de um país. Eu sou uma peça dessa engrenagem que
imprime a história no papel do jornal. A exposição desses últimos fatos
me trouxe tristeza porque não é o que busco como repórter. Aí vão
perguntar: “E por que você está dando entrevista?”. Estou dando
entrevista porque, do muito que foi dito sobre a minha pessoa, pouco foi
dito por mim. Porque quero esclarecer que não estou “afastado”.
Afastamento dá a ideia de punição, de suspensão, e nunca houve nada
nesse sentido da parte do jornal. Pelo contrário: sanamos a demanda
urgente relativa à garantia da integridade e ao mesmo tempo planejamos a
continuidade do trabalho. E mais: não existe isso de perseguir a
Polícia Militar ou a Polícia Civil com meu trabalho. O que penso é que
ninguém quer ter nessas instituições pessoas que não façam jus à
condição de representantes do Estado.
Já entrevistei muitas pessoas ameaçadas de morte, algumas delas
ameaçadas de morte por policiais, de diferentes estados. Minha percepção
é de que estas últimas sentem um nível de desamparo maior, na medida em
que, se aqueles que deveriam protegê-las, em vez disso ameaçam a sua
vida, para quem então pedem ajuda? Sem contar que membros da polícia,
por disporem do aparato do Estado, têm meios para comprometer a
credibilidade da vítima, “plantando” falsas provas. Como você percebe
isso?
A.C. – Quando você tem indicativos de que alguns dos
representantes armados do Estado querem te desestabilizar, com certeza, a
reflexão é sempre essa: para quem recorrer, como agir? Muitas vezes,
essas mesmas pessoas tentam desmoralizar seu trabalho e sua conduta fora
do campo profissional, mas tenho tentado me manter centrado. Converso
com repórteres amigos para dividir alguns pensamentos e pensar em
maneiras de me manter firme na caminhada.
Por que o estão ameaçando? Que “ameaça” você representa para que ameacem a sua vida? E por que agora, neste momento?
A.C. – Como te falei, não é de agora. É uma coisa que
ficou mais acentuada. Pode ser que tenha alguma relação com o período
eleitoral ou com outros interesses que ainda não consigo afirmar quais
são. Um deles, por exemplo, pode ser a necessidade que muitos têm de
manter o poder ou de chegar até o poder.
Quem? Pode explicar melhor?
A.C. – Não posso nomeá-los, pois aí já entraremos em
informações referentes aos bastidores das polícias, e esses meandros
estão muito ligados às minhas fontes e às minhas apurações. Hoje, em São
Paulo, a questão da polícia vai além dos muros dessas instituições. A
cidade nunca esteve, em período democrático, tão militarizada. Trinta
das 31 subprefeituras ganharam comando de PMs da reserva na gestão
Kassab. Com a criação da operação delegada, os policiais militares hoje
atuam oficialmente não apenas para a corporação, mas também para a
prefeitura – é o bico legalizado. Vemos então que as frentes de poder
estão crescendo, e há muita gente na disputa. Sem contar os cargos na
Câmara Municipal.
Por que isso está acontecendo? Por que, por exemplo, 30 das 31
subprefeituras de São Paulo ganharam comando de PMs da reserva nesta
gestão? Como você caracterizaria esse projeto de poder?
A.C. – Esse processo ganhou corpo quando o coronel
(agora reformado) da PM Álvaro Batista Camilo, também candidato a
vereador, pelo PSD, se aproximou do prefeito Kassab, na época em que era
comandante-geral da PM. Como é sabido, Kassab vem marcando sua gestão
com uma postura de cerceamento. Já são notórias as tentativas de
proibição de sopões a moradores de rua, de saraus na periferia, da feira
da praça Roosevelt, no centro de São Paulo, e outras mais.
O que o fato de um repórter de um dos maiores jornais do país ser
ameaçado de morte revela sobre a violência no estado de São Paulo?
A.C. – É uma questão que não diz respeito somente à
violência. Esta é a parte tangível de todo o contexto que citei
anteriormente. A relação polícia X poder é atualmente um ponto muito
importante. Desde a abertura política, talvez seja este o momento em que
São Paulo mais tenha a influência de policiais militares. Com poder em
jogo, os ânimos se acirram, em qualquer área.
Por que agora? E o que está em jogo?
Caramante – Estamos em um momento
propício por conta da já citada aproximação sem precedentes (da polícia)
com outras esferas do poder público. Muitos oficiais da PM notaram, e
agora tentam dar vazão a isso, que há outras e importantes áreas para
onde estender seu campo de atuação – e de poder.
Você cobre a área policial há 13 anos. Documentou, como repórter, a
ascensão do PCC. Você costuma dizer que vivemos numa guerra. Por quê?
Como é essa guerra e em que momento dessa guerra estamos hoje?
A.C. – É uma guerra entre o grupo criminoso PCC e as
forças de segurança do Estado. O PCC é forte porque controla o tráfico
de drogas no estado de São Paulo. É inegável o fato de o estado de São
Paulo, desde 1999, ter conseguido baixar suas taxas de homicídios
dolosos (intencionais). Essa queda, porém, é fruto de controle duplo: se
deve tanto a progressos na Segurança Pública quanto ao comando do PCC.
Em muitas situações, é o PCC quem decide quem morre em São Paulo, nos
chamados tribunais do crime. Hoje, outubro de 2012, a guerra está mais
acirrada entre o PCC e os policiais militares da Rota, considerada uma
tropa de elite da PM paulista e que conta com 820 integrantes.
Investigações contra o PCC antes feitas pela Polícia Civil, que tem essa
atribuição pela lei, foram remetidas à Rota, que tem função de
policiamento preventivo, ou seja, trabalhar para evitar que o crime
ocorra.Estou dizendo isso porque defendo criminosos e quero dar uma
chance a eles? Não. Falo porque é ilegal. Quem investiga é a Polícia
Civil. Há aí uma nítida tentativa de empoderar ainda mais os integrantes
da Rota. É o Estado agindo ilegalmente.
Por quê?
A.C. – Isso é um reflexo da atual cúpula da Secretaria
da Segurança Pública, que tem um histórico de relacionamento intrínseco
com a Rota. Nos primeiros escalões da segurança pública paulista,
também, impera uma certa desconfiança quanto à atuação de parte da
Polícia Civil nas investigações sobre o PCC. Fala-se em corrupção.
Na semana passada, a Folha
publicou que arquivos da facção
PCC revelam atuação em 123 cidades de São Paulo, com 1.343 homens em
todas as regiões do estado. O governo de São Paulo tentou minimizaro
impacto das informações e o poder do PCC. O governador, Geraldo Alckmin,
afirmou que “há muita lenda” sobre facções criminosas no estado de São
Paulo. O secretário da Segurança Pública, Antonio Ferreira Pinto,
declarou: “A facção é bem menor do que dizem. Não chega a 30 ou 40
indivíduos que estão presos há muito tempo e se dedicam ao tráfico. Nós
temos asfixiado esse tráfico com grandes prisões”. O coronel da Polícia
Militar Marcos Roberto Chaves da Silva, comandante do policiamento da
capital, disse que existe “folclore” nas informações sobre o PCC. Qual é
a verdade?
A.C. – Curioso como esse folclore é alinhado à
realidade. No mês passado, por exemplo, a Rota matou nove pessoas
envolvidas em um “tribunal do crime”, um julgamento no qual um homem
suspeito de estuprar uma menina teria sua vida decidida pelos criminosos
do PCC. Um dos nove mortos pela Rota era o “réu” do partido do crime,
como os policiais chamam o PCC. Para justificar a ação, o governo disse
que todos eram muito perigosos, que integravam o PCC. Passado o calor do
acontecimento, o governo voltou à postura habitual de minimizar a
importância, o tamanho e o poder do grupo. Se são apenas 30 ou 40
indivíduos, as oito mortes no mês passado reduziram significativamente o
PCC. É isso o que vemos quando policiais militares são mortos quando
estão de folga, como tem ocorrido constantemente em São Paulo? Será que o
PCC deixou de decidir quem vive ou quem morre durante um “tribunal do
crime”, quase sempre via telefones celulares usados por criminosos que
estão presos e, na teoria, deveriam estar sem comunicação com as ruas?
Quem vive na periferia de São Paulo sabe bem como as coisas são.
E como as coisas são? Como é o cotidiano de quem vive na periferia com relação ao PCC e à Rota?
A.C. – O PCC domina os pontos de tráfico de drogas em
São Paulo. Para evitar a presença das polícias, tenta corromper alguns
de seus integrantes e também busca evitar crimes nas redondezas dos
pontos de tráfico, principalmente homicídios. No meio disso, quem não é
nem do PCC, nem da polícia, assiste a tudo em silêncio, esperando que
não “sobre” para si.
O governador Geraldo Alckmin trocou o comando da Rota, no final de
setembro. Entre as razões, estaria a divulgação de que o número de
pessoas assassinadas pela tropa aumentou 45% nos primeiros cinco meses
deste ano, comparado ao mesmo período do ano passado. Qual é a sua
opinião sobre a Rota? Ela deveria acabar?
A.C. – Não só a Rota, mas toda a Polícia Militar. A PM
tem uma estrutura que desconhece meritocracia e privilegia uma variação
do nepotismo. Policiais dos escalões mais baixos são usados como degrau
para filhos de oficiais que estão no topo da pirâmide. É como se o
filho do coronel fosse, desde sempre, o coronel de amanhã, e o filho do
praça já nascesse sabendo que jamais será oficial. Há exceções que o
governo pode vir a bradar, claro, mas a regra é mais ou menos essa.
Quantos oficiais foram mortos pelo PCC? Nenhum. É óbvio que não tem de
morrer nem o oficial, nem o praça. Mas, hoje, só morre aquele
trabalhador que está na linha de frente e também vive na periferia de
São Paulo. Quem cobre segurança pública em São Paulo também sabe que os
policiais da Rota saem às ruas com um ímpeto diferenciado e, às vezes,
alguns deles cometem excessos. É o caso da morte do representante
comercial Paulo Alberto Santana Oliveira de Jesus em Osasco, na Grande
São Paulo, em setembro de 2011. Ele foi morto em casa, desarmado e com
as mãos para trás. Em maio deste ano, das mortes de seis suspeitos de
integrar o PCC na zona leste de São Paulo, um deles foi levado a uma
rodovia e executado. Em ambas as situações, foi forjado um confronto
armado, segundo dados apresentados por promotores. As seis mortes na
zona leste são tidas como estopim para o atual acirramento da violência
entre PCC e Rota.
Me parece curioso, para dizer o mínimo, que um repórter tenha de se
esconder para proteger sua vida após ter denunciado que um candidato a
vereador pelo PSDB e ex-comandante da Rota disseminava a violência no
Facebook e ninguém, de nenhum partido, tenha falado disso durante a
campanha. Você tem alguma hipótese para esse silêncio?
A.C. – No fim de setembro, um candidato a vereador em
São Paulo, assim como esse ex-chefe da Rota, pediu a impugnação da
candidatura dele e alegou que esse senhor aparecia em sua propaganda
política fardado, o que não é permitido pela lei eleitoral. Esse mesmo
candidato também foi alvo da ira dos simpatizantes do ex-chefe da Rota e
recebeu ameaças. A promotoria eleitoral também pediu, na semana
passada, a impugnação da candidatura desse PM reformado e alegou que ele
utilizou sua página no Facebook para incitar a violência.
Por que você se tornou repórter de polícia?
A.C. – Porque quem tem a obrigação de nos defender não
pode, sob hipótese alguma, atentar contra nós. Também queria que meu
pai tivesse o orgulho de ver seu sobrenome no jornal por uma causa
justa. Sempre admirei o trabalho de repórteres como (Caco) Barcellos. Há
histórias e situações que precisam ser contadas. Admiro muito, também,
José Hamilton Ribeiro, mestre na arte de contar histórias. Ouvi palavras
de apoio dos dois recentemente. As de Barcellos recebi com reverência. O
tenho como meu maior exemplo. As de seu Zé Hamilton, com emoção. Me
pegou desprevenido. Me marcou. Quero agradecer cada mão estendida e cada
palavra de apoio que foi dita em nome da garantia do direito de
informar e ser informado.
“Repórter de polícia” ainda é uma boa definição para jornalistas como você?
A.C. – Acredito que o termo “repórter de polícia”
deixou de existir. Hoje, cobrimos segurança pública e, por conta de uma
evolução da cobertura nessa área, que deixou de ser tão vinculada às
autoridades, como era no passado, somos repórteres de segurança pública.
E qual é a importância de se cobrir a área de segurança pública num país como o Brasil?
A.C. – É um tema intimamente ligado ao cotidiano das
pessoas, e ainda temos muito a evoluir tanto no combate à criminalidade
comum quanto à de parte das forças de segurança.
Você monitora o número de pessoas mortas pela polícia. Quantos foram mortos até hoje no estado de São Paulo?
A.C. – Sim, monitoro porque o jornal para o qual
trabalho dá atenção especial para a questão da letalidade policial.
Tenho meu próprio sistema de dados, no qual registro todas as mortes
cometidas por policiais militares. Estes números não batem com os
oficiais. A Secretaria da Segurança Pública de São Paulo divulga em sua
página na internet apenas as chamadas “resistências seguidas de morte”,
mas há outros casos que entram na vala comum dos homicídios dolosos
cometidos por qualquer cidadão. Minha contabilidade mostra que, entre
2005 e agosto deste ano, policiais militares mataram 4.358 pessoas no
estado. Destas, 3.401 foram em “resistência (à prisão) seguida de morte”
– figura jurídica inexistente, repito – e 957 em homicídios dolosos,
que vão desde brigas em bar, no trânsito, casos conjugais, até mortes
como a do empresário Ricardo de Aquino. São 47,3 mortos por PMs a cada
mês. Ou seja: 1,5 a cada dia. Este é o retrato de uma Polícia Militar
extremamente letal e que precisa passar por reformas o quanto antes.
Em que medida as relações entre o aparato de repressão do Estado e a
população explicitam a desigualdade e as fissuras da sociedade
brasileira num estado como São Paulo?
A.C. – A Polícia Militar que atua dentro do perímetro
do rodízio de veículos (de São Paulo), o chamado centro expandido, não é
a mesma que atua na periferia. Temos duas polícias militares para
cuidar da mesma cidade, e cada uma delas trata os cidadãos de maneira
diferenciada, isso de acordo com o CEP da pessoa. Muitas vezes,
policiais são mandados à periferia como forma de punição dentro do jogo
de poder que não está nos manuais da corporação. Então, já vai para lá
com um sentimento diferenciado. Recentemente, pesquisadores mostraram,
com base em dados da Secretaria Municipal da Saúde, que 93% dos mortos
pela Polícia Militar moravam na periferia de São Paulo. O estudo teve
como base os anos entre 2001 e 2010. No período, dos mortos por PMs, 54%
eram pardos ou negros.
Hoje há programas de TV que cobrem a área policial, nos quais
suspeitos são tratados por jornalistas como condenados – e condenados
sem direito algum –, marcas de tortura em detidos e presos são ignoradas
e apresentadores incitam a violência da sociedade contra “vagabundos”.
Você acha que esse tipo de imprensa colabora para que jornalistas como
você, que trabalham com seriedade e denunciam também os abusos cometidos
pela polícia, sofram ameaças?
A.C. – São profissionais da imprensa que recebem altos
salários para fazer o que fazem. Eles são experientes e, creio, no
fundo sabem que somente a Justiça pode condenar ou inocentar algum
suspeito de determinado crime. Estão ali por cifras altas. É a mesma
situação de um profissional de jornalismo que abandona a carreira numa
redação para ser assessor e ganhar R$ 1 milhão por seis meses de
trabalho numa campanha política. São opções e temos de respeitar quem as
toma. Mas essas pessoas também têm de respeitar quem não pensa como
elas.
Como é estar no lugar de vítima para você, que tanto denunciou a violação de direitos humanos dos mais pobres e indefesos?
A.C. – Vítima é a dona Maria da Conceição, mãe do Antonio Carlos da Silva, o
Carlinhos,
portador de deficiência mental que foi morto por policiais militares
que integram o grupo de extermínio “Highlanders”, segundo a Polícia
Civil e a Promotoria. Ele teve a cabeça e as mãos arrancadas após ter
sido morto porque andava na rua e tinha dificuldades de comunicação.
Você pode contar melhor esta história?
A.C. – Carlinhos foi morto em outubro de 2008, na
periferia da zona sul de São Paulo. Estava perto de casa quando foi
obrigado a entrar em uma viatura da Polícia Militar que fazia ronda no
local. Vizinhos assistiram à cena e relataram à família. Imediatamente, a
mãe, dona Maria da Conceição dos Santos, a irmã, Vânia Lúcia, e o pai
começaram a procurá-lo. Poucas horas depois foram até o 37º Batalhão,
onde ouviram da boca dos PMs – que, segundo a Polícia Civil e a
Promotoria, mataram seu filho – que não o tinham visto. Encontraram o
corpo de Carlinhos, decapitado e com as mãos arrancadas, em uma cidade
vizinha. Ele, que era portador de necessidades especiais, tinha
dificuldades para se comunicar.
Uma das maiores dificuldades da situação que você está vivendo parece ser o fato de ter virado notícia. Por quê?
A.C. – Para começar, nunca me vi numa situação assim.
Não é para isso que decidi ser repórter. A questão da exposição parece
parte de uma realidade paralela, não se encaixa na minha trajetória.
Optei por sempre passar despercebido.Quero poder continuar sentando numa
delegacia sem que ninguém saiba quem eu sou.
Imagino que você tenha medo em alguns momentos ou o tempo todo. Como lida com isso?
A.C. – O medo pode ser uma ótima ferramenta para
aguçar os instintos. Sim, pode ser devastador também. Tento utilizá-lo
como um agente minimizador de riscos. Nos momentos mais difíceis de
administrá-lo, busco lembrar por que estou nesta caminhada. Me vêm à
mente pessoas das quais contei histórias. O foco são elas, não eu.
Há perspectiva de sair dessa situação em breve?
A.C. – Minha situação atual passa por constante avaliação da direção do jornal. Por enquanto, manteremos como está.
Como essa experiência está transformando você? Já é possível perceber alguns impactos e mudanças?
A.C. – Situações dessa intensidade são oportunidades
para reafirmar algumas ideias e descartar outras. Houve impacto, e
mudanças certamente virão. Mas estão em curso, e por isso prefiro
guardá-las aqui comigo.
Que ideias você reafirmou e quais descartou?
A.C. – Reafirmei, por exemplo, a ideia de que tenho de
permanecer alguém que conta as histórias dos outros, e também meu
intuito de contribuir, minimamente que seja, para a melhoria dos setores
que cubro. Deixei de lado a ideia de que riscos podem ser mensurados
com algum grau de exatidão. Ninguém faz nada, até que alguém faça.
Como tem sido seu cotidiano nessa situação de ameaçado de morte?
A.C. – Realmente acho difícil falar sobre isso. Há
preocupação referente não apenas à situação atual, mas a como será no
futuro. Esta não é uma situação que tenha prazo de validade. Agora à
noite, um dos meus filhos disse que preferia estar na nossa casa de
verdade. Perguntei o motivo. “Lá é mais colorido.”
***
[Eliane Brum é repórter da
Época]